sexta-feira, julho 04, 2008

Sexta-Feira Santa

Sexta-feira Santa. Feriado. Acabo de acordar. Mais um dia normal como todos os feriados, me mostrando que a vida é tão inútil quanto os dias úteis. Ignoro toda e qualquer manifestação religiosa que possa surgir em minha frente. Estou lendo Nietzsche essa semana. Ou era Schopenhauer? Bem, estou sonolento. Fato. Acho que estou com torcicolo. Tenho a impressão que tive um sonho. Não sei bem se era sonho ou pesadelo. Não dou muita importância, afinal, ainda estou sonolento. Penso coisas improváveis como “todos carecem ocultar seus segredos mais perversos”. Não dou atenção. Ainda estou sonolento. Além do mais, não tenho coragem de abrir meus porões e acender a luz pra ver o que vou encontrar.

Minha geladeira está vazia. Preciso de carne. Me sinto tão carnívoro. Vomito sobre tudo o que é verde. Será que vende carne na sexta-feira santa? Se não tiver carne, compro peixe. Não custa nada ser marítimo um dia apenas. Em nome de Cristo. Pego a primeira calça jeans escura que vejo na frente e me dou conta que só tenho camisas pretas. Pego a mais nova, ainda com a etiqueta. O incômodo que o roçar do papel na minha nuca causa não é nada comparado ao flagelo de Cristo pela Via Dolorosa. Acho que gosto de me punir de alguma forma. E nunca uso sapatos. É preciso tirar os sapatos da mente para me tornar um ser humano mais amplo.

Não consigo rir de minhas pequenas ironias. Estou morto por dentro, morto num feriado. Mas caminho descalço por caminhos tortuosos e sujos. Não encontro açougues abertos. A minha carnificina interna jamais será alimentada. Decido ir ao Porto que me relembra a atmosfera simplista a fim de cumprir minha promessa marítima. Não vou por causa dos peixes, vou por causa do cheiro e do vento que viola meu corpo e o meu corte asa-delta. Paro em frente a Baía de Guanabara. Reflexo da sujeira do meu interior. As águas sujas são puro espelho. Sou guiado pelos pequenos paralelepípedos que me levam à comida embrulhada em jornais que expõem tragédias e o clima nacional. Pago e recebo o troco. A moça atrás do balcão sorri. Meio amiga, meio inimiga. Meio íntima, meio desconhecida. Deve ser a Sexta-feira.

Espero os peixes que são dilacerados na minha frente. Não esboço reações. Vejo a morte perto de mim, mas sou incapaz de sentir algo. Represento num palco o que me convém. Quero ver até onde meu personagem consegue testemunhar. Ao me deparar com a morte e não reagir, percebo até que ponto vai minha normalidade.

Os segundos se passam e o sangue escorre. Olhos esbugalhados que não são meus. Sinto uma pontada de volúpia perante o ardor daquele momento. Que tipo de ser humano sou eu que me satisfaço com requintes de crueldade? Presencio a morte e me calo. Não impeço o escorrer do sangue. Ultimamente desobedeço os meus instintos: não me choco perante as circunstâncias e a vida segue assim.

A assassina me entrega o embrulho. Por mais simpático, amigável e íntimo que seu sorriso possa parecer, não me esqueço da sujeira vermelha de suas mãos. E não adiantaria lavar nem esfregar com bucha. A água é incapaz de celebrar a morte.

Tenho sede por peixes. Compro dez quilos e os quero tão ensangüentados quanto os outros. Não me conformo com a sina deles e nem sou eu quem lhes atribuo o destino. É a sexta-feira. Santa. Decido que terão um destino menos trágico. E os quero nojentos como são. Por um momento a moça não traz mais o sorriso em seu semblante. Olho, de relance para seus dedos, instrumentos de aniquilação e percebo a aliança por entre os dedos macios. Teria família? Marido? Filhos? Não importa. Nada trará os peixes de volta.

Isso me faz sofrer. Mas não hesito em exibir a morbidez em meus braços, o embrulho da tragédia e o jornal anunciando tragédia e meteorologia em meus braços. Suporto a dor e o odor. Volto à Baía de Guanabara. Todos me olham, mas não me importo. Nenhum deles têm os olhos esbugalhados. A sexta-feira da paixão está prestes a se findar no seu ritual religioso e eu estou prestes a cumprir minha promessa. Corro até as pedras, frente ao mar. Minhas mãos são trêmulas, mas meu desejo é firme. Sempre fui inconstante, sempre fui carnívoro. Hoje é preciso jejuar para que me sinta menos pecador. Abro o embrulho e devolvo a vida morta ao mar. Jogo cada pedaço, um por um, o mais longe que puder. Jogo-os com toda a minha força. E nunca me importo com os que observam. Eles não sabem que já fui carnívoro. E a vida segue assim.

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