sexta-feira, julho 04, 2008

Nem toda nudez será castigada


Então acordei com um gosto doce na boca, envolto num aroma suave que meus lençóis carregavam. Tive a sensação de que violara algum corpo recentemente e que em troca, tal corpo violara minha alma. Senti o rastro da volúpia e a armadilha do amor. Percebi na temperatura que era uma atmosfera de paixão mas minha nudez tinha um significado que eu desconhecia. Tinha uma frieza reconfortante que, contraditoriamente, contrastava com o ardor do silêncio do meu quarto e com as palavras transpostas em sentimento que não conseguia arrancar de minhas roupas espalhadas pelo carpete marrom.

Meus sonhos me enganavam pois eram sim extensão da minha realidade. Nesse simulacro, levantei-me de supetão tentando decifrar os ingredientes que compunham o ar do meu quarto, do meu esconderijo. Certamente cheirava a sexo, mas a essência ainda era desconhecida. Vesti a calça e procurei pela camisa em toda parte. Foi quando a vi cobrindo o corpo de uma mulher. Vi que minha camisa não era mais posse minha. Nunca mais seria. Pertencia a ela e não mais sentira como se fosse minha.

Fiquei à espreita observando aquela que tirara a camisa de mim, aquela cujo corpo se apossou do único tecido capaz de cobrir a minha nudez despretensiosa. Percebi que a camisa fazia parte de mim, mas que a minha parte agora pertencia a ela. Dona da minha nudez. Poderia agredí-la e pegar de volta minha camisa, mas me sentiria um sequestrador e , além do mais, isso não faria com que a camisa voltassee pra mim. Voltaria sim, mas com o cheiro dela, com o aroma daquele corpo, com vestígios daquela alma. Percebi então que deveria encarar um amor pra-vida-inteira. Não queria mais um amor de-vez-em-quando. E um amor decidido que invade meu esconderijo e retira de mim tudo o que há de melhor e tudo que jamais emprestaria a alguém.

A cumplicidade dos lençóis e a condição da camisa me levaram a um nível inatingível de sentimento. Acho que foi o tão banalizado amor que me prendeu num sorriso curto e simples ao me deparar com ela na cozinha e ouvir um cumprimento matinal qualquer. Descobri então o que descobria meu ser. Descobri nela o que a camisa cobria em mim. A minha nudez precisava ser compartilhada e minha relação metonímica com o pano guardador de segredos despiu meus sentimentos e vestiu minha esperança.

Ao ver, sobre a mesa, o meu sagrado sucrilhos com nescau preparado, tive o meu momento epifânico. Foi quando entendi que aquilo que estava vivendo duraria para sempre.

4 comentários:

Hudson Pereira disse...

Um texto maravilhoso, do tipo que eu gosto.

Captar a essência da paixão em estado bruto, aqueles míseros e magníficos segundos do gozo não é para qualquer um.

Parabéns Adilson!!! Bato palmas pra esse texto.

E que essa paixão vassaladora regrada à cereais matinais e cumplicidade voraz apareca em mais contos,crônicas,frases...

Tua escrita arrebata!

Vanessa Martins disse...

Extremamente sexy. Explicitamente envolvente.
Capaz de revirar os brios com apenas um golpe certeiro. Não o golpe que corta a pele, mas aquele que sangra os desejos e bagunça a alma.

Anônimo disse...

Incrével como vc consegue captar a esência da sociedade pós-moderna sem ser piegas ou forçado.. Um dos melhores contos que eu já li..Parabéns!!

Elis disse...

Meu lindo...não posso dizer que você me surpreendeu,pois,seria mentira.Sei o quanto é talentoso,mas não imaginava ler algo tão bonito,tão tocante.
Ai,menino...larga esse msn e vá ESCREVER um livro!rs

Amo-te!
Elis Negrão.